segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Cinema - O Dublê do Diabo

Dublê de filho de Saddam relata rotina de estupros e torturas

Latif Yahia conta à BBC Brasil cotidiano como duplo de Uday Hussein; relato acaba de virar filme.

Da BBC
Latif Yahia (Foto: Divulgação)
Latif Yahia (Foto: Divulgação)

No dia 4 de junho de 1969, nascia em Bagdá Latif Yahia. Quatro dias depois, nascia, na mesma capital iraquiana Uday Saddam Hussein.
Os dois viriam a se encontrar na escola, onde muitos já notavam a incrível semelhança entre entre Latif Yahia e o filho de Saddam Hussein, guardadas pequenas diferenças: Uday era três centímetros mais alto e tinha os dentes frontais separados.
Eles voltariam a se encontrar anos depois e - mais do que isso - passariam a ser na prática a mesma pessoa. O convívio íntimo e forçado com o sádico filho do líder do Iraque foi um longo calvário para Yahia, como ele relatou em um livro que acaba de ser adaptado para as telas, com o filme The Devil's Double (O Dublê do Diabo, em tradução livre), em cartaz na Grã-Bretanha.
A despeito de o filme dirigido por Lee Tamahori retratar Uday como alguém capaz de raptar meninas na porta da escola para estuprá-las e de cometer torturas hediondas, Latif Yahia disse em entrevista à BBC Brasil que o personagem real era ainda mais maléfico.
''Não é exagero dizer que o filme só retrata 20% do comportamento de Uday. Se fôssemos mostrar tudo, o filme não poderia ser exibido. Testemunhei muitos estupros e torturas praticadas por ele. Ele era absolutamente cruel'', afirmou.

História
Na década de 80, quando o Iraque foi à guerra com o vizinho o Irã, Yahia serviu o Exército de seu país. Foi nessa época que ele recebeu um pedido inesperado e que o encheu de medo.
''Recebi uma carta me convocando para ir ao Palácio Presidencial. Não tinha ideia do porquê. Me perguntei: 'Será que fiz algo errado?'. Ao chegar lá, voltei a encontrar Uday.''
''Ele me perguntou: 'O que você acharia de ser filho de Saddam Hussein'?'', lembra Yahia.
O Iraque vivia o auge da propaganda nacionalista por conta do esforço de guerra. Yahia era um soldado patriota e respondeu utilizando um dos bordões do regime: ''Somos todos filhos de Saddam Hussein''.
Ao que Uday acrescentou: ''Não, quero que você seja o meu fiday (termo em árabe que designa alguém que se sacrifica pelo outro ou um dublê), quero que você seja Uday Hussein.''
Yahia indagou o que lhe aconteceria se a resposta fosse não. O sósia ilustre soou complacente: ''Se você disser não, você fica à vontade para voltar ao seu Exército. O Iraque é um país livre.''
Mas Yahia conta que bastou Uday se retirar para que seus capangas o capturassem e o jogassem no porta-malas de um carro para em seguida despejá-lo em uma cela em que a luz ficava permanentemente acesa e que era totalmente pintada de vermelho.
''Depois de sete dias preso, Uday apareceu e me perguntou: 'Você vai aceitar o emprego ou quer que eu traga as suas irmãs?'. Respondi que aceitava e que ele deixasse minha família em paz.''

Emprego integral
A tarefa era um emprego em tempo integral e exigiu que Yahia abdicasse de sua identidade verdadeira, rompesse laços com sua família e até se submetesse a cirurgias plásticas.
''Os médicos fizeram intervenções para mudar os dentes da frente e modificaram o meu queixo. Eu tinha que ser igual a ele em tudo. A maneira como ele falava, dirigia, fumava, andava. Tudo tinha que ser copiado.''
Desde setembro de 1987, quando ele assumiu o ''emprego'' de dublê até novembro de 1991, quando finalmente conseguiu fugir, Yahia conta que sua vida foi ''absolutamente horrível, um pesadelo''.
''Testemunhei muitos estupros e torturas praticadas por ele e eu próprio fui torturado.'' Mas ele afirma que a despeito da crueldade e da ausência de limites de seu patrão, nunca aceitou ordens para cometer crimes.

Crimes
'Certa vez, Uday me pediu que eu matasse o homem que o havia denunciado a Saddam por ele ter estuprado sua filha. Eu me neguei, dizendo: 'Você tem suas próprias pessoas para isso. Não vou aceitar essa ordem'. Então, peguei uma faca e cortei meus pulsos ali mesmo. Desde então, ele nunca mais me pediu para fazer algo assim.''
O filho de Saddam era, nas palavras de seu duplo, ''um gângster, que não era amado por ninguém, nem sequer por seu pai, que o colocou na prisão e o torturou. Os únicos que o avamam eram os cafetões e traficantes que o cercavam, já que ele os deixava agir com total impunidade''.
Yahia conta que com o tempo, Uday foi se tornando mais e mais agressivo, ainda mais quando passou a presidir o Comitê Olímpico Iraquiano, que servia como o ''país particular de Uday, que ele usava para promover suas festas, arrumar garotas e drogas''.
Uday exerceu ainda outros cargos, como o de presidente do Sindicato dos Jornalistas do Iraque e dono de um jornal e de uma estação de TV. Como líder do Comitê Olímpico e da Federação de Futebol do país, há relatos de que ele chegou a comandar a tortura de atletas que tiveram desempenho aquém do esperado.
Nos anos 90, após a invasão do Kuwait, o Ocidente se voltou contra o regime de Saddam Hussein, e Yahia sentiu que era o momento oportuno para tentar escapar de seu calvário.
''Mas não foi fácil, não foi como comprar uma passagem numa agência de viagens. Eu estava em um hotel, onde tive uma briga com Uday. Ele me deu um tiro no ombro direito. Ainda assim, consegui fugir, mas os cafetões dele estavam lá também e me perseguiram por toda Bagdá.''
O dublê consegui chegar à cidade de Mosul, no norte do país. E perto dali foi resgatado por agentes da CIA.
De lá, conseguiu mais tarde chegar à Áustria, onde tinha um primo que trabalhava como médico.
Mas seu sofrimento não havia terminado. ''Minha família foi presa. E Uday matou meu pai em 1995. Quando Saddam soube do ocorrido, pediu desculpas à minha família. Mas isso de nada valia, meu pai já estava morto''.

Único acordo possível
Mesmo depois disso, ele conta que o filho de Saddam continuou tentando convencê-lo a regressar ao Iraque. ''Recebi várias ofertas para voltar ao país, para ter negócios em meu nome. Mas disse a ele que só havia um acordo possível a ser firmado entre nós: Ou ele me matava ou eu o matava.''
Latif Yahia nunca chegou a cumprir a sua ameça. Mas em 1996, Uday Hussein escapou da morte por pouco, após ter sofrido um atentado no qual tomou vários tiros. O atentado teria deixado-o parcialmente paralisado e, segundo rumores, até mesmo impotente.
Em 2003, Uday e Qusay Hussein foram mortos durante uma operação militar americana na mesma cidade de Mosul para onde Yahia fugiu.
Yahia se tornou um advogado do setor de direitos humanos e tem negócios no ramo de moda feminina, carreira que ele abraçou quando ainda vivia na Áustria.
Ele conta que por pressão de Washington, nunca obteve cidadania em nenhum dos países em que viveu. Ele passou mais tempo na Irlanda, onde residiu por 15 anos, se casou com uma irlandesa e teve filhos.
Os americanos, conta, não queriam que ele seguisse dando entrevistas e escrevendo livros e por isso teriam até mesmo arquitetado o seu sequestro e detenção quando ele morava na Áustria.
''Fui preso por mais de dez meses e levado para uma prisão onde fui torturado por agentes austríacos e americanos. Não me surpreenderia se eu fosse morto a qualquer minuto.''
Mas Latif Yahia diz que não vai se calar. Seu próximo projeto é transformar em documentário um dos relatos que escreveu a respeito do seu convívio forçado com Uday, chamado The Black Book.
Ainda hoje, o fantasma de Uday o atormenta. ''Se eu encontrar com ele no inferno, eu o mato novamente. Consegui fugir há 20 anos, mas desde então nunca mais fui capaz de dormir uma só noite. Vivo assim até hoje.''

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